“O acaso agindo com precisão”
Saulo Simões
Inicio, antes de tudo, com uma contextualização das contribuições “precisas do acaso” que foram balizadoras para o conceito e a imagem desta campanha para o 48º Festival Guarnicê de Cinema, contribuições estas de pensadores que parafraseio em seguida.
A ideia de cuidar da natureza coloca o homem no centro de tudo, na verdade, a natureza não precisa de ajuda do homem, ela se ela se autoajuda, se autosustenta. A natureza deseja apenas que o homem saiba se relacionar com ela. (Ailton Krenak, 2025).
A gente respira o ar que as plantas deixam a gente respirar. É o planeta que nos mantém vivos. É preciso ressacralizar o nosso planeta, porque o que é sagrado aqui nesse planeta é a vida. (Marcelo Gleiser, 2024). Condenso essas duas ideias na premissa de que a natureza não implora pela “salvação” do homem; ela exige uma relação de respeito, reciprocidade e dependência mútua. Não se trata de antropocentrismo, e sim de biocentrismo.
Mas ainda faltava o fecho da ideia, que veio do espontâneo diálogo com meu filho de 6 anos:
“Pai, na floresta mora gente?”
“Sim, filho. Mora sim.”
“Como eles foram para lá?”
“Eles não foram, eles sempre estiveram. Eles nasceram lá.”
Essa conversa, em sua singeleza, estabelece pilar conceitual da campanha: a relação dos povos originários com seu território não é de posse, mas de pertencimento. É a mais pura manifestação do conceito de Florestania, perceber a floresta (natureza) como casa, território de pacto ético e político.
A imagem-síntese desta edição do Festival Guarnicê de Cinema é, antes de tudo, um questionamento. Uma mulher indígena, idosa, sentada em uma cadeira de diretora de cinema, olha diretamente por sobre o ombro para o espectador, em tom provocador. Seu olhar, o gesto mais potente da campanha, carregado de sabedoria ancestral propõe um desafio a quem lhe cruza o fitar.
À sua volta, os “guardiões da floresta”: Saci, Curupira, Mãe d’Água, Boitatá, em plena cumplicidade com a diretora, também “quebram a quarta parede” (recurso cinematográfico clássico) compactuando a intenção coletiva de propor ao espectador um convite a fazer parte desse pacto narrativo. Os personagens olham fixamente para você e perguntam: “E aí, vai ficar só olhando?” / “E você, vai ficar parado?”. Instala-se, assim, o espectador dentro da cena.
A anciã-diretora, em seu assento “grifado”, não está ali por acaso. Esse espaço de poder ancestral representa a necessidade urgente de uma correção na nossa rota civilizatória e de sobrevivência. E ninguém, desde sempre, exercita a experiência desse modo de vida, da Florestania. Ninguém, desde sempre, soube dirigir com mais equilíbrio a relação entre humanos e natureza do que os povos originários.
Esse fato ressignifica o papel de “diretora” para além da técnica cinematográfica. Em suas mãos, o roteiro que guiará os olhares dispostos a enxergar um futuro diferente do que está posto, adotando uma postura ética e responsável. Manifesta-se aqui, portanto, uma nova camada, sofisticada, porém acessível, na metáfora entre “dirigir um filme” (condução técnica) e “dirigir a humanidade” (condução espiritual, ecológica, ancestral).
A escolha da anciã-diretora subverte vários estereótipos ao mesmo tempo: gênero, etnia e idade. Dialoga com uma interseccionalidade temática que atravessa o cinema, a ecologia, a crise climática, a decolonialidade, o eurocentrismo, entre tantos outros campos possíveis. Cabe pontuar que, talvez pela primeira vez no imaginário midiático de um festival de cinema, uma mulher indígena e anciã é apresentada como símbolo máximo de comando, de arte, de cultura, de destino. Uma legítima autoridade criativa.
A campanha inscreve-se em um território expandido de sentido, inspirada por pensadores como Ailton Krenak e Marcelo Gleiser, que articulam o conceito que une floresta e cidadania: florestania, o pertencimento ético, afetivo e político à floresta.
A campanha não intenta apenas divulgar o Festival Guarnicê; ela encena um chamado ancestral, simbólico e imagético. É a arte como forma de reconexão com o mundo, e o cinema como linguagem de escuta, diálogo e transformação.
A escolha estética visual parte de uma predileção pelo desenho geométrico, consoante com o apelo desse estilo de ilustração, que se afasta intencionalmente do realismo e do naturalismo. Propõe, em vez disso, ênfase nos conceitos, funcionando como metáfora visual: a floresta não é pano de fundo, não é cenário, a natureza é proponente.
A atitude dos personagens míticos, olhando diretamente para o espectador, rompe a passividade, com a clara intenção de provocar, de intimar à participação. A construção gráfica privilegia formas planas e recortadas. As cores compõem uma paleta simbólica entre as escalas tonais de verde (floresta), vermelho (etnias indígenas, sangue ancestral) e amarelo (sol, luz).
Do ponto de vista da técnica construtiva, a imagem da identidade do festival foi pensada de forma modular, com possibilidade de interação entre os elementos gráficos em variadas composições e para diferentes fins de aplicação: cartazes, redes sociais, camisetas, vídeos, catálogo oficial, etc. Não é só uma “imagem bonita”: é um sistema visual funcional e estratégico.
A densidade simbólica e temática da campanha revela com clareza que há um pensamento crítico por trás da imagem. Não é uma ilustração com função decorativa (o que já seria importante), mas uma linguagem visual expandida, com potência política, poética e ética.
Permito-me, talvez prepotentemente, nomear este texto como um manifesto. Não era a intenção inicial, mas o acaso continuou agindo, transformando esta campanha em um meio para declarar uma emergência, questionar um sistema de pensamento e propor um novo caminho ético e político. Ela passou a defender uma causa e, por essa razão, opera com a força e a intenção de um manifesto.